Segurança que salvou a vida de três garotos no incêndio do Ninho do Urubu, Benedito Ferreira fala pela primeira vez sobre a tragédia e diz que alguns extintores não funcionaram no CT
“Eu não sou herói”
No dia 8 de fevereiro de 2019, o Flamengo viveu a maior tragédia de sua história. A morte de 10 garotos dentro de um contêiner no Ninho do Urubu deixa marcas até hoje, especialmente para quem viveu o incêndio de perto. O segurança Benedito Ferreira era um dos funcionários dentro do CT naquela data. Mais de dois anos depois, ele decidiu contar pela primeira vez o que viu naquela triste manhã.
O segurança conseguiu retirar três garotos das chamas, evitando que o número de mortes fosse maior.
– Quando cheguei próximo do quarto 3, eu vi a fisionomia de um atleta. Foi quando ele quebrou a janela. E eu consegui tirar três palitos de grade e puxei. Puxei o primeiro atleta, puxei o segundo e o terceiro, que estava muito queimado. E teve mais um que não teve como tirar. Eu preferia entrar e tirar todos os garotos a estar falando aqui. Eu perderia a vida para deixar eles 10 aqui. Eu não sou herói.
Benedito Ferreira lembra que o incêndio começou pouco depois das 5h da manhã, quando chegavam os funcionários da cozinha. O turno do segurança ia das 19h às 7h. Ele recorda cada palavra que ouviu dos meninos depois do início do incêndio.
– Teve um momento em que um garoto chegou para mim e falou: “Tio, lá atrás está cheio”. Aí bateu o desespero, de saber como ia fazer para entrar. Não tinha mais como entrar. Quando chegava atrás do contêiner, no quarto 3, eu vi os garotos, tirei dois. Me ajudaram a puxar o terceiro, que estava muito queimado. Aí eu vi que acabou… (se emociona) quando o teto abaixou. Quando o teto abaixou, não tinha mais como fazer. Eu sentei e fiquei olhando aquela cena. Que nunca mais saiu da minha memória. Até hoje escuto gritarem, que está ardendo, socorro. Um dos garotos, quando consegui puxar, estava muito queimado. Ele olhou para mim e disse: “Tio, não me deixa morrer”. Até hoje penso nisso.
OS EXTINTORES
O segurança afirma que nem todos os extintores disponíveis naquele dia no Ninho do Urubu funcionaram durante o incêndio.
– Tinham extintores que não estavam funcionando. No início eu usei um extintor de pó químico. Um garoto que tava do meu lado tentou utilizar e não funcionou. Ele tentou me passar e também não funcionou, tentei um terceiro extintor e também não funcionou.
No mesmo dia do incêndio, Benedito Ferreira prestou depoimento à polícia. Na ocasião, ele disse que usou dois extintores para tentar apagar o fogo e acrescentou que depois pegou mais três extintores. Mas não mencionou que alguns deles não funcionaram. Segundo o segurança, não houve questionamentos sobre o funcionamento deles.
– Não foi perguntado. Só me foi perguntado como e se eu tinha utilizado extintor. (Falei que) Sim.
Em nota divulgada neste domingo (leia a íntegra ao fim desta reportagem), o Flamengo diz que a visão de Ferreira não encontra amparo nos fatos, na lei e no inquérito criminal. De acordo com o clube, a investigação demonstra que todos os extintores estavam dentro do prazo de validade, revisados e carregados.
No inquérito, consta que havia cinco extintores com validade e funcionamento adequados próximos ao alojamento, mas não especifica se são os mesmos usados pelo segurança. Na conclusão, nada é mencionado sobre o funcionamento dos extintores. A denúncia do Ministério Público, que tem por base o inquérito policial, aponta que os alojamentos dos jovens foram montados sem as devidas cautelas quanto à estrutura de evacuação, luzes de emergência, disposição de portas, gradeamento das janelas e dotação de extintores de incêndio.
Em janeiro deste ano, 11 envolvidos que haviam sido denunciados pelo MP viraram réus. Eles respondem por incêndio culposo (sem intenção). O processo está em fase de respostas das defesas.
TRABALHO NO MUSEU
Ferreira ficou nove meses longe do trabalho, do dia da tragédia até 14 de novembro de 2019. O segurança sofre de depressão e toma remédios receitados por psiquiatra. O retorno ao clube foi autorizado por médicos do trabalho, com duas condições: que ele não voltasse ao Ninho e que tivesse uma escala gradativa.
– Hoje, fico no museu (na sede da Gávea) que abre às 11h. Fico até as 17h. Lá eu vejo todos os dias as 10 camisas. Toda vez que entro lá é a primeira coisa que eu olho, eu rezo, peço a Deus que eles tenham descanso, que Deus acolha eles em paz, porque foi doloroso. Poderiam ser nossos futuros ídolos e hoje estão lá em cima.